[Estante Mágica] Vikings: a história dentro da História

8

A série televisiva Vikings é uma produção conjunta da Irlanda e do Canadá, escrita para o History Channel por Michael Hirst (também responsável por “The Tudors”). Estreou em março de 2013 no Canadá e nos Estados Unidos e, no mês seguinte, chegava ao Brasil, onde é exibida pelo NatGeo. Atualmente em sua segunda temporada, a série conquistou milhões de fãs em vários países. Por outro lado, deu margem a muitas críticas, tanto no que se refere a aspectos da trama e da narrativa quanto por parte de historiadores que apontam imprecisões na reconstrução da sociedade escandinava durante a era viking.

Aí vêm os vikings!
Aí vêm os vikings!

O roteiro da série é baseado na vida de um personagem semi-legendário, Ragnar Lothbrok (literalmente, Ragnar dos Calções Peludos), que teria vivido na Suécia e na Dinamarca, num período compreendido entre 750 e 850. Seu nome é citado na Gesta Danorum, uma compilação sobre as tradições e os feitos dos heróis dinamarqueses, escrita por volta do ano 1200 e atribuída ao historiador Saxo Grammaticus. Críticos modernos, porém, chamaram a atenção para o fato de que a Gesta não reúne apenas episódios verídicos, mas também alguns que estão mais no terreno das lendas; o Ragnar que aparece em suas páginas foi na verdade criado a partir de vários líderes e governantes escandinavos, à semelhança do que ocorre com o Rei Artur nas crônicas britânicas. Assim, embora inclua alguns personagens cuja existência é comprovada e bem documentada, tais como Horik I, rei da Dinamarca entre 827 e 854, e Egberto, rei de Wessex, falecido em 839, o universo da série deixa espaço para voos de criatividade, que o roteirista não tem hesitado em aproveitar.

Na primeira temporada, o protagonista, vivido pelo australiano Travis Fimmel, é apresentado como um homem livre que vive do produto

Athelstan crucificado, um suplício improvável após o século IV.
Athelstan crucificado, um suplício improvável após o século IV.

de sua fazenda (um karl, dentro do tradicional sistema de classes local) e participa de viagens de exploração e pilhagem durante o verão. Ragnar valoriza suas terras e sua família – a corajosa esposa Lagertha (Katheryn Winnick), o irmão Rollo (Clive Standen) e um casal de filhos ainda crianças -, mas, ao mesmo tempo, ambiciona desbravar novos territórios a oeste, opondo-se à decisão do senhor local, que deseja enviar seus homens para o oriente, como de costume. Usando uma bússola rudimentar, Ragnar e seus homens partem num barco construído pelo excêntrico Floki, vivido por Gustaf Skarsgard (uma alusão ao trapaceiro mitológico Loki? É o que todos pensamos, mas o personagem pode ter se baseado em alguém real, o norueguês Floke Vilgerdsson, que navegou das ilhas Shetland para a Islândia por volta do ano 860). Algum tempo depois, chegam à Inglaterra, saqueiam o mosteiro de Lindisfarne e regressam para enfrentar o julgamento por parte do nobre enraivecido.

A ideia de buscar novas terras não apenas para pilhá-las, mas para estabelecer colônias, como aconteceria numa fase posterior da era viking, seria expressa por Ragnar no início da segunda temporada. No entanto, os primeiros episódios contêm pelo menos dois erros graves, segundo o especialista em estudos da Escandinávia Medieval, Joel Thompson: mostrar a pena de morte como punição capital, quando a maior das penas naquela sociedade era o banimento, e afirmar que os escandinavos desconheciam a existência das terras a oeste, quando as rotas comerciais do Mar do Norte já existiam à época da invasão da Gália pelos romanos (1).

Floki na proa do barco.
Floki na proa do barco.

As críticas não param por aí. À medida que acompanhamos as aventuras (e desventuras) de Ragnar ao longo da série, deparamo-nos com um cenário muito bem reconstituído, em que casas, utensílios e tudo o mais parece plausível e compatível com o período. No entanto, embora os erros e anacronismos sejam difíceis de detectar por um leigo – afinal, ninguém usa capacete com chifres! -, estudiosos têm apontado falhas em detalhes do figurino, da arquitetura (o templo de Uppsala, por exemplo, é retratado como uma construção de madeira típica dos cristãos, que os ergueriam mais de um século depois) e, principalmente, de aspectos da lei e da sociedade. Segundo o escritor Lars Walker, um senhor escandinavo jamais agiria de forma autoritária, como Earl Haraldson (vivido por Gabriel Byrne); a assembleia conhecida como Thing seria essencialmente democrática (2). Já na segunda temporada, a crucificação do monge Athelstan (George Blagden) faz supor que era normal castigar assim os apóstatas, quando na realidade o suplício foi proibido no século IV pelo imperador romano Constantino.

Ao rebater as críticas, Michael Hirst admitiu que tomou algumas liberdades no roteiro, as quais podem ter ido de encontro à realidade

Ragnar Lothbrok
Ragnar Lothbrok

histórica. No entanto, segundo ele, há muitos pontos sobre os quais ninguém tem certeza, pois as fontes documentais são poucas e frequentemente controversas. Além disso, o projeto devia ser visto não apenas por algumas centenas ou milhares de estudiosos, como aconteceria como um documentário, mas por milhões de pessoas (3). Assim, os espectadores tinham de ter alguma coisa com que se identificar, algo que esperassem ver numa série sobre vikings – mas também, o que é essencial nesse caso, algo que fornecesse os elementos dramáticos destinados a envolver o público.

Diante dos argumentos de Hirst, não pude deixar de estabelecer uma conexão com as discussões que ocorrem em torno de outra série, “Game of Thrones”, criada por David Benioff e D. B. Weiss com base nos livros de George R. R. Martin. À parte as comparações relativas à complexidade do roteiro e dos personagens (sempre com desvantagens para “Vikings”), a série da HBO vem sendo muitas vezes analisada sob o ponto de vista histórico, não apenas para compreender e debater as influências constantes da obra de Martin e sua adaptação, mas também como uma tentativa de validar ou refutar a forma como a Idade Média e a sociedade ali são representadas – algumas vezes sem levar em conta o fato de que, ao contrário de “Vikings”, “Game of Thrones”

"Ragnar entre Lagertha e Rollo.
“Ragnar entre Lagertha e Rollo.

não se passa numa época e num local específicos do mundo que conhecemos. Sua ação transcorre num universo de características predominantemente medievais, porém ficcional, cuja única regra para que tudo funcione bem é a mesma que serve a toda literatura fantástica: coerência narrativa. Em outras palavras, podemos enxergar a implausibilidade nos acontecimentos de “Game of Thrones” se elas forem contra a lógica estabelecida para a sociedade de Westeros; ou podemos enxergá-la se um personagem agir de forma incoerente com as atitudes que teve até ali, ou mesmo com sua condição de ser humano. Não há como basear uma crítica no simples fato de que as coisas eram diferentes na Idade Média, pois não é lá que estamos. Já no caso de “Vikings”, cada crítica relativa ao papel da mulher, à forma de governar ou à maneira como se amarravam os sapatos pode encontrar respaldo em fontes e pesquisas confiáveis. E, nos dois primeiros casos pelo menos, é algo para se levar a sério.

Chegada ao Templo de Uppsala.
Chegada ao Templo de Uppsala.

Ainda assim, escolhi concordar com as “liberdades dramáticas” tomadas por Michael Hirst e continuo a assistir a série, até porque, postas na balança, as incorreções me parecem bem mais leves que os acertos. Não apenas os cenários e a história principal me envolvem, mas também as tradições ali retratadas, a menção a personagens de sagas, como Ragnar e seus filhos (4) e a inserção de lendas nórdicas que eu já conhecia, mas que sempre fico feliz de recordar. E não concordo com os críticos que afirmam que os personagens são rasos demais (entendam o desespero do Athelstan, a humilhação moral do Rollo, a dor e a dignidade da Lagertha… vejam a linguagem corporal do Ragnar, sempre tocando as pessoas) ou, menos ainda, que a narrativa é lenta. Sagas são longas e têm que se desenrolar em seu próprio ritmo. Afinal, estamos falando de um povo que vivia na neve e no gelo, mergulhado em escuridão durante vários meses do ano… Quanto tempo eles não deviam passar contando histórias?

Citações:

  1. Um dos artigos que fazem referência à inexatidão histórica da série: http://www.dailytargum.com/inside_beat/tv/historical-inaccuracies-in-vikings/article_fdfc4670-8c3d-11e2-93df-001a4bcf6878.html
  2. Outro artigo: http://spectator.org/articles/33770/history-channel-gets-vikings-precisely-wrong
  3. Argumentos do roteirista para ter tomado “liberdades dramáticas”: http://www.nytimes.com/2013/02/24/arts/television/vikings-struggles-come-to-life-in-history-channels-series.html?pagewanted=all&_r=1&
  4. Saga de Ragnar Lothbrok, em inglês, em pdf : http://www.turbidwater.com/portfolio/downloads/RagnarsSaga.pdf

Ana Lúcia Merege é carioca e trabalha na Biblioteca Nacional. É autora de artigos, alguns publicados em revistas como a Ciência Hoje das Crianças, do ensaio “Os Contos de Fadas”  e dos romances juvenis “O Caçador”, Pão e Arte”, “O Castelo das Águias” e sua sequência “A Ilha dos Ossos”. Também tem contos em várias coletâneas, incluindo algumas que organizou ou ajudou a organizar, como “Excalibur” e “Meu Amor é um Sobrevivente”. Além de escrever, a autora tem paixão por viagens, gosta de pesquisar sobre mitologia e de contar histórias.