[Conto] Equilíbrio

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por Wesley Nunes

Corria em seu Maverick vermelho, com o volante em suas mãos, seus olhos tentavam acompanhar a pista, ou melhor dizendo a avenida e as palavras do seu pai martelavam em sua cabeça.

– Vagabundo, seu inútil, você não vai ser nada na vida!

Vindo do meu pai não dá para suportar, meu velho é diferente sabe. Meu pai é daqueles que compra flores e canta musicas românticas para a esposa, que se veste de papai-noel para pré adolescentes, que fica horas em uma fila de supermercado para comprar um boneco em que o filho vai quebrar em uma semana.
A direção está dura, só enxergo vultos e luzes ao meu redor, as pontas dos dedos e a sola dos pés frias. A melodia que chega aos meus ouvidos, que toca a minha pele, é do Maverick cortando o vento, o barulho do motor é alto não é maior que as batidas do meu coração, um ritmo alucinado, não de pavor, mas de excitação cada vez acelera mais e vai jogando adrenalina por todo o meu corpo.

-Tudo que eu já fiz por você.

E eu pensando que a cada kilometro percorrido, o ódio fosse diminuindo, que a aquele ponteiro que trepidava como louco sem ter mais como avançar rasgasse a minha raiva, ao contrario aumentava.

– Some dessa casa!

Logo a figura do meu pai toma a minha mente. Nem sei para aonde estou indo nem que horas são. Sinto o carro trepidar como se não aguentasse mais, puxa pra esquerda forço o volante em minhas mãos, ele derrapa. Reduzir? Não, agora não, hoje não. As duas mãos firmes um longo respiro e tenho novamente o controle. Segundos passam e vejo aquela cena, a mão erguida, o rosto em fúria e os olhos vermelhos de tanto chorar. Não sei porque uma lágrima vem aos meus olhos, nunca fui disso, o que ele pensaria? Ela me nubla a vista, uso o braço para enxugá-la, a escuridão me dá um certo alívio. Nessa vida tudo acontece tão rápido, essa frase só começou a fazer sentido naquele instante. Tinha me livrado da lagrima e mal abri os olhos, quando vi aquele carro na minha frente. O aperto no peito, o corpo todo se contraindo, um frio no estomago, a garganta seca as mãos rígidas. Não sei como consegui jogar o carro para a esquerda e veio um poste. Justo ali, justo naquela hora. Um segundo depois? Não, não tive todo esse tempo. Para mim a vida é um monte de escolhas e suas consequências. Quem não enxerga isso, nunca fez uma escolha, não viveu.

Devia ter os meus 8 anos ou mais, aquele ano foi o que mais me marcou. Meu pai falava com alguns parentes sempre muito simpático, ora fazendo piada ora falando de trabalho. Minha mãe ajudava a minha vó na cozinha, algumas tias, daquele perfil solteirona para sempre, vinham apertar a minha bochecha ” Como você cresceu”. Sentado no sofá trocando de canal a cada minuto, só esperando dar meia noite e tudo aquilo acabar. Ouvi meu pai e minha vó com cara de brava conversando, falavam sobre alguém.
Por volta das 11:30 da noite, eu estava eufórico, por que tudo aquilo ia acabar. Percebi uma grande movimentação na garagem, um som alto de um motor possante que arrepiava os cabelos em meio à frases “Quanto tempo”, “Olha quem apareceu”. Esgueirando entre as pessoas fui ver quem era, ele abriu a porta. Vi um homem moreno, cabelo com gel penteado para trás, calça jeans. Tirou o sapato de couro algo que achei esquisito, diferente, colocou um chinelo. Veio em minha direção esfregou a minha cabeça e falou com o cigarro no canto da boca, sua voz ficava meio estranha, mas legal.

– Você deve ser o meu sobrinho Gabriel – colocou uma nota de dez reais no meu bolso, nunca tinha visto uma em toda a minha vida – Pelos presentes atrasados, se for gastar tudo em doce trás um pra mim.

Já estava com os meus 13 anos, e a festa de natal foi na casa de uma das minhas tias. Este ano não foi fácil, a empresa do meu pai mandava um monte de gente embora e aqueles que ficavam tinham que trabalhar umas 12 horas, minha mãe teve uns probleminhas no joelho e minhas notas na escola não ajudaram em nada. Foi um ano de muito “o que está acontecendo”. Estava com os mesmos parentes e o “como você cresceu” foi substituído pelo “Já tem uma namoradinha”. Isso não me incomodava, pois tinha a esperança de encontrar o meu tio Miguel, e não era mais uma criança poderia conversar com ele de homem para homem.
O dia se arrastava e por fim deu 11:20 da noite, fui logo para o portão e fiquei esperando, tentando fazer pose e cara da mau. Passado 20 minutos já estava cansado e sentado na calçada.
Minha mãe me abraçou toda sorridente, me agarrou e foi me levando para o ponto mais alto da casa. Era impossível ficar emburrado depois disso. Chegada a meia noite dei um abraço forte nela e no meu pai, eles precisavam.

– Pega o seu celular tira uma foto nossa – alguém gritou. Coloquei a mão no bolso, estava vazio – Já volto – gritei em resposta.
Desci correndo desesperado, olhei no chão estava muito escuro. Nervoso e tremendo, só pensava no preço do celular. Foi quando escutei.

– Está procurando isso daqui boca aberta?

Virei e vi meu tio Miguel, sentado em um Maverick de porta aberta, com pé para fora e jogando o celular para o alto, no fundo, um Rock.

– Pensa rápido – disse logo depois que jogou o celular em minha direção. Bateu em meu peito e por pouco não caiu no chão.
Sentei no banco de couro, ouvi a musica e com o tempo fui relaxando. Ele virou a chave segurei o volante e senti o vibrar do motor em minhas mãos.

– Está engatado acelera.

Fiquei meio inseguro, mas ele insistiu. Pisei o mais fundo que podia, ouvi o berro do motor e aquela sensação maravilhosa de poder e liberdade. Pisei mais três ou quatro vezes não queria parar.

Estava com 17 anos. Sai do colégio em mais um dia enfadonho e sem graça, notei uma freada brusca, prevendo um acidente todos foram ver o que tinha acontecido, em meio ao cheiro de pneu queimado ouvi um grito:

– Ei boca aberta, ainda não terminou a escola?
Passei por todos em meio a cotoveladas, enfiei a cabeça dentro do carro.

– Fala tio como você está?

– Vamos conversar dentro do carro, anda logo.

Ele nem tinha passado a marcha e fui logo dizendo:

– Tenho habilitação, vai me deixar dar uma volta? Curto muito carro.

– Estou sabendo. O que você vai fazer da sua vida? Seus pais devem estar preocupados?

– Meu pai é um saco, é todo certinho, só trabalha , não quer me dar um pingo de liberdade

– Você não respondeu a minha pergunta.
Ouvindo a seriedade em sua voz respondi – algo relacionado a
carro, talvez até piloto.

Passou uns 5 minutos até ele começar a parar de rir, foi então que falou:

– Acorda boca aberta, tem que nascer em berço de ouro para ser piloto. To vendo que gosta mesmo de carro, então vamos ver se você cria algum juízo na base do tranco. Vai para a direção.
Pulei para o lado e assumi o volante. Qual foi a minha sensação qualquer um perguntaria. Pilota um Maverick em alta velocidade e depois a gente conversa.

– Você quer esse carro? É claro que sim – respondeu sem esperar qualquer reação minha – É simples, basta consegui esse valor em 3 meses que o carro é seu.

Jogou um papel no meu colo, abri vi a quantia e assustado falei:
– Só isso, esse carro vale muito mais.

– Estou retribuindo um favor, você tem três meses.

Trabalhei, desde passear com cachorro até a caixa de supermercado. Consegui, e o carro me trouxe tantas coisas, as pessoas me enxergavam de outra forma, quem nunca olhava na minha cara agora me idolatrava. Com eles me sentia tão poderoso quase invencível, eles diziam”carro muito loco deveria disputar um racha”. Na primeira vez fiquei inseguro ganhei por pouco, depois virou um habito, consegui até ajuntar um bom dinheiro. Levei para o meu pai e entreguei na sua mão:

– Para ajudar nas contas aqui em casa.

– Da aonde vem esse dinheiro?

-Isso importa.

Sem dizer mais nada colocou o dinheiro de volta na minha mão. Apertei com tanta força e gritei:

– Você nem consegue sustentar uma família e ainda não aceita o meu dinheiro.

Em resposta o silencio.

Sumi daquele lugar, fui para aonde era aceito, onde todos me respeitavam. Toda vez corria feito um louco sem nenhum medo e incentivado pelo ódio, até o dia em que fui preso. Meus pais chegaram não disseram uma palavra, eram do tipo que não gostava de barraco, mas o desgosto estava estampado em suas caras. Chegando em casa começa a historia ou termina, não sei, a discussão, a mão levantada, o choro a raiva e a batida.

A minha mente vai escurecendo aos poucos como estivesse sendo destruída, apagada, embarco em um sono estranho, sem sonhos tudo escuro sem sentir nada, somente uma sensação gelada e esquisita, algo que parece tão normal e ao mesmo tempo impossível de descrever. Um tranco forte no meu peito, uma corrente elétrica percorre meu corpo, o ar invade os meus pulmões e o meu coração bate forte como se tivesse acabado de se libertar de uma jaula. Abri lentamente os olhos e vi minha mãe chorando de alegria e o alívio do meu pai. Foi milagre era o que os médicos diziam. Não conseguia entender aquela situação, nenhuma bronca, nenhum olhar de desaprovação, somente muito mimo e carinho. Estava em recuperação, ficava o dia inteiro vendo a minha mãe rezar o terço à noite, o meu pai chegar com a cara de cansado. Segurava a minha mão, sempre perguntando se eu precisava de alguma coisa e nenhuma palavra sobre o acidente. Não aguentei, em um choro que chegava a soluçar pedi desculpas desesperadamente. Meu pai beijou a minha testa e falou em um tom suave e sereno:

– Se recupera meu filho, o que importa é que você está bem.
O tempo que ignora a todos e segue sempre com pressa, naquele quarto de hospital ganhava vida, me provocava, me encarava com certa ironia. Ainda deitado uma enfermeira fazia algumas flexões com a minha perna. Minha mãe estava de óculos em uma cadeira, ocupada com uma revista de fofoca , dizendo a cada dois minutos “Está doendo”.Notei uma gritaria fora do quarto, já era muito tarde, entendia somente algumas palavras. Uma voz era a do meu pai, mas e a outra. De quem era a outra? Eu conheço? Claro que conheço é o meu tio.Minha mãe saiu preocupada para ver o que acontecia. Eu nem respirava, para tentar ouvir alguma coisa.

– É tudo culpa sua, aprendeu a ser assim com você.

– Danilo pelo amor de Deus, calma, não vai fazer nenhuma besteira. Alguém ajuda por favor.

– Cadê o moleque? Só quero ver como ele está, conversar com ele.

– Está ótimo e não tem nada para falar com você. Some daqui Miguel.

– Não saio daqui antes de falar com ele Fernanda.

– Deixa Danilo, santo Deus se acalma.

– Cadê o moleque?

– Esta no quarto, entro junto com você.

– Preciso falar com ele sozinho.

– Calma meu amor. Vai em paz Miguel ninguém vai te interromper.

Um breve silencio. O girar da maçaneta o ranger da porta e ele estava lá da mesma forma que eu vi quando tinha oito anos. Não consegui controlar a minha felicidade e disse entusiasmado:

– Como vai tio? Que bom que veio me visitar.

Ele jogou um maço de cigarro na minha cara e falou sem esconder a raiva que sentia:

– Vai fazer todas as merdas que eu faço? Começa a fumar também idiota.

Não esperava isto então não me controlei:

– Quero ser como você, não quero ser como o meu pai. Porque ninguém me entende. Amo meu pai, mas quero ser algo a mais, vejo nele uma pessoa tão pequena e tão comum.

– Seu pai é a pessoa mais incrível que eu conheço. Minha juventude não foi muito diferente do que está sendo a sua. E diferente do que é hoje em dia, naquela época se você fosse desgarrado era mau visto por todos, não é como hoje em dia. Mas eu nem ligava, porque, sempre que falavam algo ruim de mim ele logo respondia “é o jeito dele”. Encobria algumas cagadas que eu fazia enquanto trabalhava e estudava como um louco, isso até me irritava. Não sei como conseguiu comprar um Maverick, aquele mesmo que você bateu. Só por que eu disse que sonhava em ser piloto. Você acha que seu pai um sujeito comum? Nunca vi ninguém mais inteligente. Perdeu uma entrevista em uma grande empresa para ir me tirar da cadeia, ninguém mais iria. Tenho vergonha de encarar o seu pai, por tudo que ele fez por mim e nunca retribui. Seu pai e eu estamos tentando fazer com que você não cometa os mesmos erros que eu cometi. É o mínimo que posso fazer.

Aquilo foi mais forte que a batida. Ele afagou os meus cabelos e já sem a posse de durão falou:

– Ouça o seu pai ele quer o seu bem, faça com que o sacrifício que fez por mim e que faz por você não seja em vão. Não precisa se tornar um quadrado certinho, mas consiga manter um equilíbrio.

O grande dia chegou, tomei um café da manhã reforçado.

– Tenha atenção e não tenha pressa. Meu deus só falta 40 minutos.

– Calma Fernanda vai dar tempo.

Meu pai estava muito alegre e descia as escadas despreocupadamente .

– Será que vai dar tempo pai?

– Vai dar sim tenho certeza.

Chegando no portão eu vi o Maverick vermelho totalmente restaurado. Já dentro do carro meu pai entregou a chave, meu tio bagunçou o meu cabelo e perguntou:

– Vai prestar vestibular para moda?

– Design automotivo – respondi sem graça.

– Esquenta a cabeça não todo o carro que você projetar vai pode pilotar.

– Assim espero – respondi em meio a um sorriso para disfarçar o nervosismo – Meus deus só falta 30 minutos.

– Pisa Fundo boca aberta – disseram meu pai e o meu tio.